segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Por que você vem se explicar? Acha que me deve isso?

ANTERIOR A TUDO!
O texto foi dividido como costumo fazer pelo cuidado de manter uma ordem. Mas peço que se você quiser salvá-lo retire os números. É na realidade um texto contínuo, e os parágrafos 5 e 6 são na verdade um só.
Tenho a impressão de lhe ter ofendido no meu último depoimento. Eu estava meio perturbado. Você me conhece, sabe como é. Acho que este novo pode me redimir. Você entenderá.

1
[Escrito em um diário íntimo]

Segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Pela Noite

[…] “Leio um bom livro. Um que Sofia me recomendou. Lindo. Suave. Anacrônico. 'A Insustentável Leveza do Ser'. Lendo-o eu a imagino a comover-se com certas partes. Como da relação da heroína com sua mãe. Da semelhança da heroína comigo. E do herói com ela. É curiosa a inversão, mas as semelhanças não são tão grandes. Apenas a moça é provinciana e à seu modo ingênua, como eu fui e em parte ainda sou um pouco, como era quando convivi com Sofia. A moça livra-se da realidade insuportável lendo romances. E um livro que tem um papel importante na estória, papel que não sei como chama, é Ana Karenina de Tolstoi. Um livro de que eu gosto muito. Ela acredita no amor. É capaz de amar verdadeiramente ao herói. Um homem descrente dos sentimentos, celibatário, que tem várias amantes. A heroína morre de ciúmes. Ele se culpa e continua com as traições.

2
Ele parece com ela, Sofia, nesse sentido, da sua visão sobre o amor. Minha querida não vê mais que a satisfação de seus desejos carnais. Não pode entender como eu a amo. Não sei nem se o poderá. Ela não compreendia e tinha repugnância do meu bem-querer cego e obstinado, da minha vontade de homenageá-la com todos os atos do meu dia. Ela não entendeu minha escalada para tentar alcançá-la. Ela desprezou tudo. E arranjou um idiota qualquer que satisfizesse seus caprichos. Eu tive muita raiva, e nunca fui tão triste. Nisso ela se parece com ele, mas só nas idiossincrasias e não inteiramente nos atos.

3
Ela também tem suas semelhanças com a heroína. Mas essas semelhanças não me são concebíveis, a não ser por conjeturas vagas. Vejo-as na relação da heroína com sua mãe e na mágoa que Sofia sente da própria mãe, sentimento que pude ver de relance, na nossa primeira conversa. De outras semelhanças entre as duas eu não sei dizer, embora perceba, acho que por serem coisas muito secretas, impressões que os sentidos dos apaixonados, tão aguçados que são, têm a capacidade de capitar. Mas essas impressões são tão descritíveis quanto a paixão que as proporciona.

4
Ela me recomendou o livro, eu sei, porque nele há uma mensagem, algo que, como ela diz, só eu sou capaz de entender; essa mensagem esclarece algo sobre nós. Existe algo que ela identificou entre nós e aqueles dois heróis. Mas eu tenho de terminar o livro para entender por inteiro.

5
Neste momento minha Sofia não existe mais. Ela cresceu e se tornou aquela meretriz de vermelho, entorpecida, que eu pude ver outro dia. Seria de me perguntar se a minha Sofia realmente existiu. Acho que não. Ela foi uma criação do meu cérebro doido de amor. Eu não podia me permitir perceber os seus defeitos, concordava com ela em tudo, e evitava os embates. Por que me era impossível feri-la, mas acho que ela não percebia isso. Naquela época ela vivia muito mais do que eu. Conheceu muita gente, divertiu-se. Eu era ingênuo como a heroína do livro, com a diferença de que minhas fugas da realidade se constituíam na minha poesia, inofensiva como eu.

6
Ela tinha uma vida que a elevava perto de mim. Ela era superior sócio-economicamente, culturalmente, espiritualmente. Ela era uma musa encantadora e ousada. E eu um poétinha de saco cheio da vida. Seria um crime eu não me apaixonar. E como ela me deixou bem claro ultimamente, seria aborrecedor para ela me dar atenção. Eu a amei, e de certa forma eu só tinha a ela. E ela não me podia querer por que tinha um mundo coisas e gentes melhores do que eu, mais interessantes.” […]

[Há bem mais. Mas não acho que deva ser mostrado.]

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