quinta-feira, 27 de maio de 2010

20 anos depois.

Avistei a casa de longe. Era modesta e tinha flores bem cuidadas no jardim. Janelas fechadas e um tapete escrito “bem-vindo” na porta.
Bati na porta com cuidado, talvez ela estivesse dormindo, pensei.
O dia estava lindo, sem nuvens no céu e o sol brilhava como nunca. Bati outra vez e notei a porta aberta. Abri tentando não fazer barulho e logo senti um forte cheiro de café fresco e pão de queijo recém tirado do forno.
“Ah! Olá! Desculpe, não ouvi você bater. Por favor, entre.”
Sua voz era doce e o seu olhar não escondia a solidão para qual se entregou depois de tantos anos. Os cabelos mais revoltosos do que nunca, mas dessa vez os cachos carregavam o peso da maturidade dando ao preto natural rajadas charmosas de prateado.
Pelos deuses como continuava linda.
“A porta estava aberta e não pude resistir ao cheiro do café.”
“Você continua pontual. 3 colheres de açucar?”
Como ela ainda podia lembrar? Sim, Clarice, 3 colheres de açucar.
A casa escura dava ao ambiente um tom sombrio, mas aconchegante. Havia livros espalhados por todos os lados, estantes e mais estantes habitados por folhas de papeis amareladas e empoeiradas.
“Você ainda gosta das janelas fechadas.”
“Posso abrir se isso te incomoda”
Não era a escuridão que me incomodava, e sim o cheiro de uísque vencido e cigarro mofado. Porém aquele cheiro forte se misturava com seu perfume de pacholli o que dava a ela um ar mais sensual do que me lembrava.
“Assim está ótimo.”
Deu um sorriso de canto de boca e me convidou para sentar sem se incomodar com a bagunça aparentemente natural da mesa. Afastou alguns blocos de anotações e acomodou as xícaras de café.
“Inspirações”. Murmurou discretamente.
Ao se sentar tomou um grande gole do café e mordeu um pedaço do pão de queijo.
“Vamos começar então Clarice.”
Ela me olhava fixamente, com a mesma seriedade e desconfiança de sempre.
“Jornalista? Quem diria. Eu sempre te imaginei sentado em um ateliê fumando um charuto fedido, pintando telas surrealistas e reclamando por ser um artista não compreendido.”
Ela sempre me arranca um sorriso, fosse qual situação eu estivesse.
“Você realmente me imagina reclamando de alguma coisa?”
“Pensei que o tempo o ensinaria a se impor mais.”
“E ensinou. Mais não viemos aqui falar de mim. Eu, pelo contrario, sempre soube que você seria uma grande escritora”
“Mesmo assim nunca gostou das coisas que eu escrevia sobre você”
“Não gostava do fato de que soubesse mais sobre mim do que eu mesmo.”
Ela deu mais um grande gole do café. Estava distante como se ainda fizesse doer algumas feridas do passado. Comecei a duvidar se era realmente eu a pessoa certa para estar ali. “Ela não mentirá pra você” disse o editor chefe, “me traga seus segredos e eu te darei a primeira pagina.”.
“Me desculpa pela bagunça da casa. Eu andei meio ocupada com as plantas essa semana”
“Eu gosto. Gosto do cheiro impregnado nessas paredes. É tudo tão seu. Eu, sinceramente, estava com medo da Clarice que ia encontrar, mais fico feliz de ver a mesma personalidade forte de sempre”
“É isso que você vê nessa desorganização? Uma personalidade forte?”
“Não estou vendo desorganização nenhuma aqui! Vejo tudo na mais perfeita ordem imposta por você.”
Parecia surpresa com a minha resposta, não estava acostumada a ser elogiada por mim. Continuava calada e com o olhar fixo.
“Vamos começar logo com as perguntas?”
“Sim, claro. Se importa de me acompanhar até a sala, sou mais sincera quando estou confortável.”
Acenti com a cabeça.
Ao chegar na sala, Clarice abriu todas as janelas. O sol, mesmo muito claro e vivo, tocou os moveis com cuidado, como se pedisse permissão para entrar. Devagar, cauteloso, insistindo em uma aproximação, que parece não ter dado muito certo das outras vezes. Do contrario, o vento forte do verão trazia consigo o cheiro intenso de jasmim, fazendo com que muitas folhas se espalhassem pelo chão. Mas Clarice não pareceu se importar e fechou os olhos sentindo como nunca a luz do sol em seu rosto.
Só assim pude vê-la mais claramente. Usava um vestido muito caseiro e a simplicidade quase a tornava ingênua, para não dizer indefesa, mas eu ainda a conhecia muito bem, e sabia que daquela mulher, agora muito mais densa e madura, se podia esperar muita coisa.
“Comecemos então”
Eu pude sentir a mais doce voz me tirando do transe que eu nem tinha me dado conta de ter entrado. Ela se sentou na poltrona quase sumindo entre as almofadas, mostrado sutilmente as pernas roliças e tão excitantes quanto eu me lembrava. Tirei meu gravador de dentro do bolso esquerdo, me sentei na cadeira estofada atrás de mim e respirei fundo: “que aquilo não fique mais difícil do que já está”
“Esse seu novo livro é bem diferente do tema das suas poesias. Algum motivo especial para uma mudança tão repentina de publico? Quer dizer, por que a aposta agora em um livro infantil?”
Eu continuava nervoso. Não sabia o que estava acontecendo comigo. Estava naquela profissão a anos, já havia me acostumado com esse tipo de situação. Clarisse, pelo contrario, estava mais segura de si do que nunca.
“Poesia é pra ler com os dentes e mastigar bem. Sentir o bolo alimentar passar pela garganta e esperar quieto a digestão. A maioria das pessoas não estão preparadas para ‘fazer o quilo’. As crianças, pelo contrario, estão com fome de algo que as fascine, sabendo então o que fazer com um banque de palavras, eu estou apostando nisso.”
Tomou mais um grande gole da xícara de café.
“O que te fez escrever ‘O que não fazer dentro’?”
“Ah sim, é um dos meus livros preferidos. Baseado em ‘A Utopia’, a obra de um grande escritor do século XVIII, Thomas Mouros, definitivamente uma bela obra de arte. É a ideia do não-estado, não-capital, não-poder. Eu odeio o poder e o que ele faz com as pessoas. As torna podres e mesquinhas. Mas parece que na sociedade de hoje, esse é o único objetivo que interessa. O que fariam as pessoas se esse objetivo não existisse? É mais ou menos isso que eu questiono. Sei lá. Qualquer um pode criar o seu mundo imaginário. Mesmo que este mundo seja a utopia dentro da utopia.”
“Você acha o Brasil podre e mesquinho?”
“Acho as pessoas podres e mesquinhas, foram elas que começaram com toda essa merda. As leis aqui são como ninfetas virgens. Prontas e feitas para serem estrupadas. O que faria o ser humano se não tivesse leis para burlar? A vida perderia o seu significado então? Somos, com certeza, muito maiores do que isso.”
“Você aposta em um ser humano politicamente correto? Como a poesia metrificada e versos decassílabos.”
“Nada faz mais mal a poesia do que métrica e versos decassílabos.”
“Por que você escreve?”
“Escrevo para ser amada. (Sim, García Márquez e Nicolas Behr já o disseram. Repito.)”
“E o por que do isolamento?”
“Faz-me muito bem. Eu passei muito tempo vivendo e me alimentando do caos. Hoje me contento com apenas com a minha bagunça interior e a poeira dos meus livros, me ajuda a escrever. Gosto das minhas plantas, do meu peixe e do pão de queijo caseiro. E quando chega a noite, não preciso mais do que uma dose dupla de uísque e minha maquina de escrever.”
“Isso é bem a sua cara mesmo. Já te vi reclamando muito de solidão. Não sente mais esse vazio?”
“Vazio? Não, não. As vezes me incomodo com o silencio, mas depois percebo que a natureza nunca se cala e sempre conversa comigo. Seria injustiça, diante de todo esse verde, dizer que me sinto sozinha.
“É difícil te imaginara assim, sem presença física de amor, sem o natural contato de pele com pele. De onde tira tanta inspiração para seus contos eróticos?”
“Posso estar isolada agora, mas tenho muitas experiências e boa memória. Parece engraçado de se dizer, mas tive muitas cobaias. Sem falar que escrevo esses contos a muito tempo; sei o que chama a atenção do publico.”
Respirei fundo. Eu via diante de mim uma Clarice que não conhecia. Profissional e direta. Sempre insisti em dizer que nunca vi muito sentido em seus pensamentos, sem falar na bebida, nunca gostei de ve-la beber; nos seus atos e surrealismo exagerado, mas a verdade é que nunca consegui admitir no ser humano maravilhoso que conseguia ser sem fazer esforço.
Continuava parado, admirando-a. Decidi que era daquela maneira que queria lembrar-me dela. Afogada em almofadas, sensualmente aconchegante e com uma grande caneca de café na mão.

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